Esse inflacionamento da conta de luz tem suas raízes no apagão de 2001, que impôs um rígido racionamento de energia por nove meses. Desde então, as políticas públicas do setor energético se voltaram à ampliação da rede
Imagem: Caio Coronel / Divulgação Itaipu
Como explicar a alguém que o Brasil está entre os países com custo mais baixo para produção de energia elétrica e, ao mesmo tempo, cobra dos consumidores finais uma tarifa em média 5,5 vezes mais alta do que na Argentina, quase o dobro do México e da Coreia do Sul, e praticamente a mesma dos Estados Unidos?
“A tarifa média hoje é de R$ 864,00 por megawatt-hora. O Brasil hoje é o país da energia barata, mas da tarifa cara”, admitiu o diretor-geral da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), Sandoval de Araújo Feitosa, em audiência pública na Comissão de Serviços de Infraestrutura do Senado. O preço final extrapola várias vezes o custo exclusivo da energia em si (geração) para os consumidores do mercado livre (atualmente em torno de R$ 120,00 o MWh) e do mercado cativo (R$ 250,00 o MWh).
Esse inflacionamento da conta de luz tem suas raízes no apagão de 2001, que impôs um rígido racionamento de energia por nove meses. Desde então, as políticas públicas do setor energético se voltaram à ampliação da rede e diversificação das fontes, para diminuir a dependência das hidrelétricas e do regime de chuvas.
Com incentivos e subsídios, as energias solar e eólica, então praticamente inexistentes, já respondem por 16% da matriz elétrica. A geração distribuída (GD), que é a produção própria pelos consumidores, geralmente com painéis solares nas residências e comércios, hoje tem 9% de participação. Já a fonte hidráulica reduziu sua importância no sistema de 68% para 52%, enquanto a geração nuclear permaneceu em 1%.
Setor elétrico cresceu "um Brasil e meio" em 20 anos
Além de ter diversificado sua matriz, o país conseguiu nesses 20 anos crescer uma vez e meia toda sua infraestrutura no setor elétrico. Saltou de 81 GW de capacidade instalada para 212 GW, e de uma estrutura de 70 mil km de linhas de transmissão para 179 mil km. No período, segundo a Aneel, a tarifa média do item “energia” no país subiu abaixo do IPCA e do IGPM; o aumento dos custos de transmissão ficou próximo do IPCA, enquanto o da geração ficou acima do IPCA e abaixo do IGPM. Por que, então, o valor da tarifa final ao consumidor explodiu?
Boa parte da explicação, além do peso dos tributos, está nos penduricalhos acrescentados à conta de luz pelo Executivo e pelo Legislativo – os chamados encargos setoriais – para financiar políticas públicas de incentivos, benefícios e subsídios cruzados dentro do próprio sistema. Esses encargos hoje respondem por quase um quarto da conta final.
Em seu site, a Aneel mantém um painel de transparência do rol de subsídios pagos pelos consumidores brasileiros. O “subsidiômetro” mostra quanto custa cada item da fatura que compõem a chamada Conta de Desenvolvimento Energético (CDE).
A CDE funciona como um “fundão” setorial, e é usada para viabilizar a competitividade de fontes alternativas (eólicas, solares e PCHs), levar a energia elétrica a regiões isoladas, incentivar a geração distribuída, subsidiar o carvão mineral nacional e prover descontos na conta de luz para os consumidores residenciais de baixa renda, dentre outros custos.
Infográfico Gazeta do Povo
Consumidores cativos arcam com vários subsídios da conta de energia
Em 2022, esse fundo custou R$ 34,37 bilhões. Boa parte, contudo, foi cobrada apenas dos consumidores do mercado cativo (consumidores residenciais, pequenas indústrias e comércios). Somente eles, por exemplo, arcam com o custo elevado da contratação de termelétricas em leilões de energia para dar segurança a todo o sistema contra o risco de apagão; somente eles pagam as taxas de Itaipu e das usinas nucleares de Angra 1 e Angra 2; e somente eles pagam os subsídios concedidos à geração distribuída.
Em reportagem desta Gazeta do Povo, empresários do setor já alertaram que se não houver correção de rumo, a migração dos consumidores do mercado cativo para o mercado livre vai provocar uma "espiral da morte" para a conta de luz dos 88 milhões de usuários do sistema de baixa tensão.
O subsídio para fontes incentivadas (PCHs, usinas eólicas, solares e de biomassa) em 2022 chegou a R$ 8,5 bilhões. Essas fontes renováveis detêm desconto mínimo de 50% nas Tarifas de Uso no Sistema de Transmissão e de Distribuição (TUST e TUSD). O subsídio é cruzado, ou seja, o desconto dado é cobrado dos outros consumidores.
“O custo dos painéis solares já reduziu mais de 80% e a indústria eólica hoje é 80% nacionalizada. Claro que isso (subsídio) tem impacto nas contas públicas, é uma decisão que tem que ser discutida. Temos a forte convicção de que os novos projetos não precisariam mais de subsídio, mas é uma política pública e nós temos que segui-la”, disse o diretor da Aneel na audiência com senadores, no final de maio.
Parte da torneira dos subsídios às renováveis se fechou com a Lei 14.120, que retirou o desconto de 50% da “tarifa do fio” para novos grandes projetos eólicos, solares e de biomassa. Contudo, antes do encerramento do benefício, foi concedido prazo de um ano para concessão de outorgas, que venceu em março. “Foi uma corrida do ouro e criou um estoque gigantesco, que a gente ainda não sabe o tamanho”, diz Edmundo Grune, diretor-técnico da consultoria PSR.
Energia solar diz que contribui mais do que se beneficia
Apesar de ser um dos mais beneficiados por subsídios, o setor da energia solar garante que, em médio prazo, até 2031, o crescimento da modalidade vai trazer mais de R$ 86,2 bilhões em benefícios sistêmicos à sociedade brasileira. O efeito, segundo a Associação Brasileira de Energia Solar (Absolar) será o de baratear a conta de luz em pelo menos 5,6%. Na conta ainda precisariam ser computados os mais de 330 mil empregos do setor, R$ 14,3 bilhões pagos em impostos e a redução da emissão de poluentes e gases de efeito estufa, melhorando os indicadores ambientais do país.
Nos próximos dez anos a energia solar proporcionaria ainda, segundo estudo da consultoria Volt Robotics encomendado pela Absolar, a redução no risco de racionamentos e bandeiras tarifárias e aumento da competitividade na produção de alimentos, em consequência da melhoria da produtividade das fazendas solares.
Energia solar cresceu no Brasil exponencialmente, apoiada por subsídios Imagem: José Fernando Ogura / Prefeitura de Curitiba
Haveria também, em dez anos, redução de R$ 34 bilhões nos custos de geração de energia elétrica, com a diminuição da geração termelétrica fóssil; redução de R$ 22,4 bilhões em riscos financeiros, devido ao efeito protetor contra oscilações no preço dos combustíveis; redução de R$ 11,5 bilhões em encargos setoriais causados pelo esvaziamento dos reservatórios das hidrelétricas; redução das diferenças de preços de energia entre as regiões Nordeste e Sudeste, economizando R$ 8,5 bilhões para os consumidores; redução de R$ 8,2 bilhões com a diminuição das perdas técnicas do sistema elétricos; redução do consumo no horário de pico no Brasil, com economia de R$ 1,6 bilhão no período.
Subsídios à geração distribuída são questionados
A energia eólica é outra fonte renovável que recebe incentivos, a exemplo da energia solar. Para a presidente da Associação Brasileira de Energia Eólica (ABEEólica), Elbia Gannoum, a questão do subsídio da tarifa do fio – que alcançou R$ 8 bilhões em 2022 – está resolvida e não incidirá em novos projetos que venham a ser aprovados.
Uma queixa quase unânime no setor, aponta Gannoum, é contra a manutenção dos incentivos à geração distribuída. “Já deveria ter acabado, mas o setor de solar distribuído vai ao Congresso, renova leis, e isso é o que está pesando muito na tarifa do consumidor. E não está resolvido, pelo contrário. Tem propostas no Congresso para aumentar os subsídios à geração distribuída”, diz. Em 2022, o subsídio da conta de luz à geração distribuída alcançou R$ 2,8 bilhões.
A legislação atual prevê que os consumidores de baixa tensão só poderão migrar para o mercado livre de energia em 2026 (pequeno comércio e indústria) e em 2028 (residenciais). Quer não quer esperar, acaba optando pela geração distribuída. Vale tanto para quem compra um telhado de painéis solares como para quem se associa a uma “fazendinha solar” na região de atuação de sua distribuidora.
“Isso é possível, contanto que os dois, a usina e o consumidor, estejam dentro da mesma distribuidora. Os agentes captaram que isso tem muito valor para o consumidor, então eles compram terreno, desenvolvem uma usina fotovoltaica lá em cima é fazem um consórcio. Você faz assinatura de um plano solar e tem energia barata, limpa e sem precisar pagar uma série de custos para a distribuidora”, aponta Grune, da PSR.
Em nota, a Associação Brasileira de Geração Distribuída (ABGD) afirmou "que é necessário ter uma visão sistêmica" sobre os subsídios inseridos na tarifa final da energia elétrica. "Há outros eixos que recebem maiores valores de subsídio, tanto total, quanto proporcionalmente, do que a Geração Distribuída, como a Fonte Incentivada, a Conta Consumo Combustíveis e a tarifa social. Entendemos que financiar energias renováveis e a autoprodução energética beneficia o meio ambiente, a comunidade onde há geração distribuída, os empresários, que barateiam o custo dos produtos e serviços, e o consumidor, que paga mais barato, quer pela energia elétrica, quer por um produto final", ponderou a ABGD.
Subsídios "deveriam ser custeados pelo Tesouro"
O que é quase unanimidade no setor elétrico é que se o governo federal e o Congresso querem dar subsídios, isso deveria ser uma política pública custeada pelo Tesouro, e não por penduricalhos na conta de energia. “Se é subsídio, é porque tem algum setor da sociedade que precisa. Isso tem que vir do orçamento da União. Por que o consumidor de Curitiba tem que pagar o óleo diesel do Norte? A gente acaba subsidiando, em Curitiba ou em São Paulo, aquilo que deveria sair do orçamento da união. Eles não querem discutir no Congresso, daí enfiam na conta de energia”, diz Cláudio Ribeiro, CEO da 2W Ecobank, comercializadora de energia no mercado livre.
Para Grune, da PSR, a conjuntura atual é totalmente diferente de quando o sistema foi pensado, em 2004. “Ao longo do tempo, vários agentes foram descobrindo que havia maneiras legais, tudo dentro da regra do jogo, de evitar certos custos. Eles foram se aproveitando da regra e das oportunidades, no sentido positivo da palavra, e o que aconteceu no final é que além de colocar mais custo na conta de luz, tem cada vez menos gente para pagar. É preciso atualizar esse sistema para tentar dividir esses custos de maneira mais igual, mais harmônica, e principalmente de maneira sustentável, para desativar essa bomba que a gente criou no setor”, conclui.
Informações da Gazeta do Povo
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